“ - Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como uma baleia morta – disse-me ele na rua da clínica olhando os prédios desbotados e tristes de Campolide.”

“ Sentado nos teus ombros quase tocava os ramos dos castanheiros com a cabeça, aureolado de luz à maneira dos santos dos milagres, enquanto uma eternidade de fotografia me imobilizava o sorriso que encontro, tantos anos depois, no espelho do quarto, a troçar-me numa careta azeda.”

“Os pássaros, explicava o pai encostado ao muro do poço da quinta, morrem muito devagar, sem motivo, sem se dar por isso, e um belo dia acordam de barriga para cima, de boca aberta, flutuando no vento.”

“Explica-me os pássaros. Assim, sem mais nada, explica-me os pássaros, um pedido embaraçoso para um homem de negócios. Mas tu sorriste e disseste-me que os ossos deles eram feitos de espuma de praia, que se alimentavam das migalhas do vento e que quando morriam flutuavam de costas no ar, de olhos fechados como as velhas na comunhão.”

“Domingo era a chatice da desocupação, o quarto dos brinquedos resolvidos, o corpo a arrastar-se, maçado, pelos cantos. A mãe jogava as cartas com as amigas, na sala, num cintilação de pulseiras e de brincos, as bocas pintadas conversavam, como periquitos, de filhos, de criadas, dos empregos dos maridos.”

- Os pássaros – disse a Marília – que sabiam vocês dos pássaros?”

“Quando havia parentes o meu pai desdobrava o écran de tripé ao fundo da sala, montava o projector, apagava as luzes, um rectângulo branco surgia a tremer na tela, traços e cruzes vermelhas vibravam e dissolviam-se, um cone de luz onde o fumo dos cigarros se enrolava em volutas lentas sobre as nossas cabeças, e nisto o mar repleto de albatrozes, a forma afuselada dos corpos, os bicos pálidos abertos, os espanadores achatados das asas, dezenas, centenas, milhares de pássaros.”

“Os pássaros quando morrem – explicou o pai – flutuam de barriga para o ar no vento”

“ – Mal se lhe percebia o corpo – esclareceu o Carlos – comido pelos pássaros, pelo lodo da ria, pelo tempo que demoraram a encontrá-lo”

“Falava devagar, sem indignação nem zanga, mas eu cessara por completo de a escutar: achava-me ao colo do pai, sob o castanheiro do poço, numa tarde antiga que se não sumira nunca dentro dele a ouvir a explicação dos pássaros.”

“Na sala havia um álbum cheio de desenhos de homens nus com asas, de falcões com tronco de gente, de esquisitas misturas, como centauros, de pessoas e de pássaros: E se a mãe se levantasse agora de mesa, pensa, e começasse a voar, como um periquito aflito, sobre os pratos da sopa?”

“ – Vamos furar-lhes a barriga? – propôs o pai num riso cúmplice, a estender a manga para a faca de prata dos livros. – Se lhes rasgarmos a pança e virmos o que têm dentro, talvez consigas encontrar, percebes, essa célebre explicação dos pássaros.”

“ – Pronto – disse o pai segurando no insecto imóvel com as pontas dos dedos e transferindo-o para uma placa rugosa de cartolina. – Ei-lo definitivamente morto. Fácil, não é?”

“ – O facto é que era uma pessoa estranha com interesses esquisitos, com manias absurdas: Olhe, pouco antes de morrer, por exemplo, veio pedir-me que lhe explicasse os pássaros, como se os pássaros, não é, se pudessem explicar: nunca compreendi o que ele queria dizer com aquilo:

os pássaros, oiça lá, você entende?”


EXPLICAÇÃO DOS PÁSSAROS

in www.lercontexto.blogspot.com


pa_leio #33 - 19 de Janeiro de 2008
A misteriosa chama da Rainha Loana - Umberto Eco



"Yambo, um abastado alfarrabista de Milão na casa dos sessenta, perdeu a memória após um AVC - (...) não se lembra do próprio nome, não reconhece as próprias filhas ou qualquer momento da sua infância ou da sua família.


Numa tentativa de recuperação de si próprio, Yambo aceita a sugestão da mulher de voltar à casa de campo da sua infância, onde descobre (...)

Assim, Yambo acaba por reviver a história da sua vida: de Mussolini à educação católica, de Josephine Baker a Flash Gordon ou Fred Astaire. As suas memórias vão surgindo ininterruptamente, e a sua própria vida vai surgindo diante dos seus olhos como uma banda desenhada. Nesta luta para recuperar a memória, Yambo só procura uma única e simples imagem: (...)


Nota: provavelmente para a maioria de nós o nome Umberto Eco suscita-nos logo "O nome da rosa". O pa_leio já muitas vezes se inclinou para o ler e a escolha acabava sempre por recair noutro livro qualquer. O argumento que surge sempre contra é o "tamanho".
Desta vez apareceu a "rainha Loana", por mim já tantas vezes folheado para apreciar as ilustrações que percorrem as suas páginas.
O que nos foi contado foi basicamente o que esta "contra-capa" nos conta. Percebe-se porque foi tão fácil de nos conquistar!
Entretanto obrigada Luís pela dica do site!

Aviso para os leitores do Pa_leio:


O livro do mês do Pa_leio: "A misteriosa chama da rainha Loana" de Umberto Eco é um verdadeiro labirinto de citações literárias sem a respectiva fonte bibliográfica. É muito fácil, por mais culto que seja o leitor, passar por páginas e páginas sem compreender uma única citação. Pelo que, venho por este meio salvar todos os queridos leitores do Pa_leio de uma grande dor de cabeça. É muito fácil, basta acompanhar a leitura do livro com a consulta do seguinte site: http://queenloana.wikispaces.com/
Deste modo, a leitura deste romance torna-se uma experiência cultural colossal que envergonha o Mundo de Sofia (ao jeito de Umberto Eco não vou deixar qualquer referência à autoria desta obra). Boa leitura :)

pa_leio #32 - 15 de Dezembro de 2007

Explicação dos pássaros - António Lobo Antunes


A explicação dos pássaros...Eis o realismo levado a um expoente, que transporta o leitor para uma dimensão diferente e o deixa, neste tempo presente, a questionar a limitada interpretação dos seus 5 sentidos!
Ainda assim a poesia não é esquecida: "Nunca tivemos tempo, não é, (...),e agora é tarde, estupidamente tarde, ficamos assim a olhar-nos, ausentes, estrangeiros, cheios de mãos supérfluas sem bolsos para ancorar, à procura na cabeça vazia, das palavras de ternura que não soubemos aprender, dos gestos de amor de que nos envergonhamos, da intimidade que nos apavora." pag 23 Edição ne varietur, dom quixote.
posted by: sara p.

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