ANA TERESA PEREIRA – O FIM DE LIZZIE


História de quatro irmãos (um filho biológico, duas gémeas adoptadas e um outro rapaz adoptado) que recordam os tempos de criança passados na casa do avô em Inglaterra. Os longos verões na charneca, o espesso nevoeiro do inverno inglês («no principio era o nevoeiro»). A vida adulta resultou bem diferente. Cada uma das criança é agora um adulto frustrado («sempre senti que há em nós qualquer coisa de errado, qualquer coisa de partido»). A notícia da morte do avô é esperada sem grande surpresa. O desvanecimento do fantasma do avô era há muito esperado («Os olhos azuis do avô brilhavam na penumbra, cheios de interesse, como se quisesse saber tudo a nosso respeito. E quando finalmente nos mandou embora, tive a impressão de que sabia»). A abertura do testamento do avô guardou a derradeira surpresa. A última cláusula do testamento determina que a atribuição da herança será adiada por sete anos, devendo ser partilhado pelos herdeiros que sobreviverem até essa data («Os que estivessem vivos. Havia algo de arrepiante naquelas palavras. Não só porque éramos demasiados novos para pensar a sério na morte....Havia mais qualquer coisa»).


Uma história aparentemente simples, mas que motiva um complexo jogo de atracção e traição («Ninguém tinha a cintura mais fina, as pernas mais bonitas...»). De invocação de memórias («A charneca muito próxima, muito azul») e do reconhecimento da dureza da vida adulta («Deus afasta as nuvens, como se afastasse um véu, e a terra revelava-se como as cores e os cheiros, e uma luz inesperada...»). A vontade de obter desafogo financeiro leva cada uma das personagens a procurar eliminar os irmãos («Era muito dinheiro. Pelo menos para nós, que aos vinte e oito ou vinte e nove não tínhamos o suficiente para pagar as contas no fim do mês. E ainda havia a casa»). No decorrer do romance descobrem-se velhos segredos, guardados desde os tempos de infância («o tempo em que acreditávamos em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço...»).


Um dos melhores livros de literatura contemporânea portuguesa que alguma vez me passaram pelas mãos. Os quatro irmãos funcionam como espelhos que se reflectem uns nos outros e que se confundem. Os cenários são apresentados tal como são percepcionados pelas personagens. Wistaria Hall, a vivenda do avô, é de proporções quase infinitas, tal como os longos verões e a infinita imaginação dos quatro crianças. A cidade de Londres da vida adulta é, em oposição, boémia e decadente. Todas as personagens são imensamente complexas e imprevisíveis. A beleza reservada de Lizzie («Gostava de vê-la debruçada sobre as aguarela, a camisa xadrez suja de tinta, o cabelo preso na nuca com um gancho. Ninguém tinha os olhos tão azuis») contrasta com a beleza hollywoodesca de Miranda («Miranda, a que tinha os olhos tão azuis como Lizzie, a cintura tão fina, as pernas tão bonitas... e qualquer coisa de nocturno que não existia em Lizzie e que eu não conseguia definir. Tinha um ar pouco natural, com o casaco cinzento, ou talvez prateado, a maquilhagem pesada, os sapatos de salto muito alto.»). A confiança e aspecto atlético de John («John parecia mais alto e atlético do que nunca, o rosto queimado pelo sol. Era evidente que não passava muito tempo em Londres») contrasta como aspecto felino do narrador («Uma antiga namorada disse uma vez que eu tinha ar de quem passou algum tempo no inferno e está ainda um pouco chamuscado»).


Um pequeno livro viciante, a ler e reler. Como pode uma obra-prima destas custar apenas 7 euros! A não perder.


Recomendo que o leiam até ao próximo Pa-leio, já que muitos, como eu, não tiveram tempo de ler os Pássaros Feridos.






1 comentários:

Adoro Ana Teresa Pereira, um caso único na literatura portuguesa, e "O Fim de Lizzie" é um dos meus próximos livros a comprar. Como ainda não tive oportunidade de o adquirir, gostei de ficar a saber um pouco mais. Obrigada.

7:28 da tarde  

Mensagem mais recente Mensagem antiga Página inicial