ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE - ANA TERESA PEREIRA




Mais um romance da minha nova paixão literária. Desta vez o mote é o seguinte:
“ How can we know the dancer from the dance?” W.B.YEATS


Tom é tenente na polícia. Como pessoa solitária que é tem o hábito de frequentar o pub da sua zona após o dia de trabalho. Cedo começa a reparar num outro vulto solitário com o mesmo hábito. Patrícia, a mulher de “olhos perdidos no vazio, como se estivessem muito longe” (« Tom observava-a de forma quase profissional, uma mulher jovem, morena de cabelo castanho pelos ombros, um vestido preto de alças, pernas longas sem meias, sandálias de salto alto »). Sentada todas as noites no último banco do balcão semicircular, “o copo de whiskey esquecido à sua frente, um cigarro a arder no cinzeiro” (“como se só o fumo lhe interessasse”).


A repetição deste encontro marca a primeira parte do romance. Um carrocel de imagens, o mesmo whiskey, o mesmo cigarro a arder, as mesmas notas de Tenderly («you took my lips, you took my love, tenderly...») que Patrícia escolhe na jukebox ao abandonar o pub, a mesmíssima perseguição nocturna, muito cinematográfica, de Tom, guiado pelo desejo que culmina, num tom muito jocoso, com o fechar da porta, a luz do interior a acender-se e um gato, na sacada, a lamber as patas. A repetição, por fim, torna-se dolorosa, quer para as personagens, quer para o leitor (« Por vezes encontravam-se sozinhos no bar, e a presença dela quase o magoava. Uma bela estátua imóvel, uma boneca que alguém colocara naquele lugar, que conservava a imobilidade do interior da caixa, que não sorria e não batia as pálpebras »). O encontro era inevitável (« I was born when he kissed me »).


Tom apaixona-se violentamente por Pat, considera-a, como refere, um anjo negro (« Trazia um vestido negro que ele conhecia, as sandálias constituídas quase só por uns saltos muito altos e umas tiras, o casaco preto no braço (...) o rosto afilado parecia ainda mais bonito, os olhos cinzentos ainda maiores ») . Pat responde: «fazes-me pensar num livro, começa assim: “Ele costumava chamar-me anjo. Palavras que um homem diz à mulher que ama” ». O sacramento estava ministrado, o casamento não tardou a realizar-se.


Como se de apenas um dia se trata-se, fez-se manhã (« Quando despertou começava a amanhecer, o corpo dela e o seu perfume tinham-se tornado tão familiares como a claridade que entrava pela janela; a jovem passava os dedos finos pela cicatriz que ele tinha no peito »). Pat revela ter um especial interesse em saber a origem daquela cicatriz. Tom, contudo, hesita em partilhar a história que lhe deu origem (« Não é uma história agradável (...) a sua mão estava abandonada no peito, escondendo a cicatriz »). Após alguma insistência por parte de Pat, Tom acaba por assentir. « Fora numa perseguição a um bando perigoso, traficante de drogas com muitos outros crimes no cartório (...) o indivíduo voltara-se para trás e alvejara-o e Tom, disparara ainda, mas sem qualquer controlo sobre a arma. O tiro perdido atingira um homem que trabalhava no jardim de uma das casas ».


Tom leva Pat a conhecer a sua nova casa, a sua nova família (« Era uma vivenda antiga (...) o tecto inclinado, as paredes cobertas de trepadeiras, os lilases no alpendre e nas árvores, os canteiros onde se misturavam inúmeras flores, davam ao lugar um aspecto assombrado, de um castelo em miniatura. E no castelo vivia uma princesinha de conto de fadas »). Emily é a doce jovem de 17 anos, filha de Tom de um casamento anterior ( « Aos dezassete anos o corpo era já o de uma mulher esbelta, mas o rosto tinha traços infantis (...) o vestido azul era simples, talvez um pouco comprido de mais (...) na verdade era encantadora. Mas a sua beleza vinha sobretudo, pensou Patrícia com um estremecimento, dos olhos» ). Os olhos de Emiy são uma “mistura de azul e violeta, ou talvez só violeta”. É descrito como assombroso que os seus olhos tão vazios (Emily é cega) fossem o que tinha de mais belo. Como em qualquer romance de Ana Teresa Pereira há um jardim. Na verdade por detrás da casa há um bosque que, aos olhos do leitor e de Emily, parece ter contornos gigantescos, alternando entre um aspecto paradisíaco e um aspecto demoníaco (« O jardim parecia mais belo do que nunca envolto na luz vermelha do crepúsculo. Por algum tempo todas as flores se tornaram vermelhas, depois azuis, e depois recuperaram as suas cores entre as sombras. As flores nocturnas desabrochavam. » ).


Os subtis mistérios daquela casa começam a revelar-se. Emily parece ter sido profundamente influenciada pelas histórias de fantasia dos governantes da casa (casal irlandês, crente na mitologia pagã). Adopta comportamentos estranhos quando se encontra sozinha no jardim (« Ficou imóvel voltou-se para o lado do bosque, como se ouvisse qualquer coisa, e então, primeiro um passo leve, lento, depois outro, começou a dançar (...) e por instantes teve impressão de que Emily não tocava o solo, estava suspensa, como uma folha ao vento, mas não havia vento »). Há, no entanto, um segredo subliminar que une fatalmente o triângulo de personagens, até que a morte os separe. É neste cenário que se desenvolve um thriller psicológico que consegue transportar o leitor para este ambiente de medo, contraface de um grande amor
« Agora sei que o amor existe, conheço o rosto dele, os seus olhos, o seu corpo, sei que me ama. E tenho medo dele, como sei que ele tem medo de mim, porque somos o lado negro um do outro (...).






A NEVE - ANA TERESA PEREIRA

Mais um livro de Ana Teresa Pereira (penso que já se pode qualificar de vício de verão) e mais uma premissa simples:

“I, painting from myself and to myself” ROBERT BROWNING.


Imaginem, por favor, Rose, jovem escritora («Ela era nova, uns trinta e dois anos, era bonita, um rosto branco e quente, a boca muito carnuda, o cabelo castanho e revolto afastado para trás com dois ganchos»), vinda do nada, chega de comboio a uma pequena vila inglesa perto de Londres. As pequenas casas, as ruas e praças, afastam-na de um passado que o leitor, embora desconheça, advinha («as casas da cidade roderam-na, protegendo-a de um mundo desconhecido e vagamente hostil»). A espessa neve do inverno britânico serve de cortina, cria um casulo, que cedo nos apercebemos representar o recreio criativo da escritora. O passado de Rose, apresenta-se, mais uma vez, com contornos fantasmagóricos. As únicas indicações que a narradora adianta são as pequenas manchas sensoriais que surgem descontextualizadas, os livros que Rose traz consigo e os homens que deixou («Havia sempre um homem e um livro, pelo menos um homem e um livro, um homem que algum tempo antes desejara com todas as suas forças e que agora não passa de um estranho, um livro que desejara com todas as suas forças e que morria lentamente debaixo dos seus dedos»).


Na pequena vila, Rose encontra uma misteriosa rapariga («olhou pela janela e foi então que viu a miúda»), parece estar abandonada, vestida com roupa florida de verão, sem mangas, um pouco curta, a mordiscar tranquilamente uma planta. Rose deixa-se fascinar por aquela visão, uma pedra no charco, um elemento deslocado da pitoresca vila. Decide seguir a rapariga, que percorre as ruas da pequena vila a um ritmo propositadamente lento. Por fim, desaparece por entre duas casas. O frio que começara a debilitar Rose, ameaçava agravar-se. Como que milagrosamente, a rapariga parece ter-lhe conduzido a uma estalagem («li o nome lá fora. Jamaica Inn, gosto do nome»).


Jamaica Inn é gerida por um homem sombrio, Michael, descrito como tendo uma beleza profunda (« (...) alto e magro, a testa muito alta, os olhos castanhos e graves.»). As histórias dos antepassados de Michael (piratas da Cornualha) atiçam a imaginação de Rose («talvez fosse violento, gostava de homens violentos»). Michael, representa o homem romântico, o ideal novelesco, a projecção do desejo amoroso de Rose («Queria tempestades e naufrágios, nos seus livros e na sua vida, e a crueldade dos piratas, que levavam as jóias a mulheres adormecidas (...) a ligação entre as coisas: o mar, as casas, os quadros da National Gallery, a neve, e o desejo, e fazer amor.»).


A estalagem encontra-se inexplicavelmente vazia. Os corredores e os quartos vazios parecem reflectir o próprio sentir artístico de Rose («Havia qualquer coisa naquela casa que a fazia lembrar-se de livros infantis, os longos corredores e os quartos fechados, os degraus, tinha de subir três degraus para entrar em alguns quartos, e claro, tinha de descer cinco para entrar na cozinha, a cozinha de livros e de crianças, descobrira ao fundo uma porta que dava para a cave»). Não obstante, Rose decide arrendar um dos quartos, o único virado para o jardim («Havia um jardim lá fora, e não era pequeno, mal se avistava o muro do outro lado das árvores. Teve a impressão de ver uma cabana ao fundo, o telhado branco de neve; um pássaro cruzou o céu deixando-a quase assustada»).


É neste cenário que Rose decide escrever o seu romance (« A primeira imagem fora a da cozinha, era um bom centro, um bom começo para qualquer coisa. Depois eles tinham aparecido, ele parecia-se com Michael, a testa alta e os olhos profundos, a beleza um pouco desajeitada, a sua voz. A mulher parecia-se um pouco com ela mesma, alta e esbelta, com o cabelo demasiado comprido e revolto»).


O processo de escrita surge ao leitor entre cortada com os passeios de Rose pelo idílico jardim da estalagem, que parece acompanhar o respirar de Rose, transformando-se com o seu estado de espírito («Rose percebeu de repente que se estavam a passar coisas no jardim (...) sentava-se no chão junto aos tanques e quebrava o gelo, olhava os mundos adormecidos, as águas escuras onde se adivinhavam seres vivos (...) estou deitada na erva, a humidade atravessa-me a roupa, os ramos da camélias desenham teias por cima de mim, e há cores, luz, vento, nuvens que passam entre as folhas»).


A fantasmagórica rapariga aparece e desaparece no jardim, ao sabor da neve e acompanha Rose nos seus passeios («Rose teve novamente uma sensação de irrealidade ao vê-la. Estava encostada a uma árvore, brincando com a pulseira no braço nu, e não parecia ter frio»). Michael, revela-se uma personagem ausente, a sua presença é apenas marcadas pelo ranger do soalho, pelos barulhos nocturnos, pelo som da rotina matinal vindo da cozinha.

«na manhã seguinte quando releu as últimas páginas que escrevera sentiu uma alegria enorme, o seu desejo passara para o livro, encontrava-o em todas as palavras, nas que estavam escritas e nas que não estavam escritas

O seu livro estava cheio de deuses

José Saramago terminou um novo livro. Chama-se A viagem do elefante. Sai em Outubro.



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ANA TERESA PEREIRA – O FIM DE LIZZIE


História de quatro irmãos (um filho biológico, duas gémeas adoptadas e um outro rapaz adoptado) que recordam os tempos de criança passados na casa do avô em Inglaterra. Os longos verões na charneca, o espesso nevoeiro do inverno inglês («no principio era o nevoeiro»). A vida adulta resultou bem diferente. Cada uma das criança é agora um adulto frustrado («sempre senti que há em nós qualquer coisa de errado, qualquer coisa de partido»). A notícia da morte do avô é esperada sem grande surpresa. O desvanecimento do fantasma do avô era há muito esperado («Os olhos azuis do avô brilhavam na penumbra, cheios de interesse, como se quisesse saber tudo a nosso respeito. E quando finalmente nos mandou embora, tive a impressão de que sabia»). A abertura do testamento do avô guardou a derradeira surpresa. A última cláusula do testamento determina que a atribuição da herança será adiada por sete anos, devendo ser partilhado pelos herdeiros que sobreviverem até essa data («Os que estivessem vivos. Havia algo de arrepiante naquelas palavras. Não só porque éramos demasiados novos para pensar a sério na morte....Havia mais qualquer coisa»).


Uma história aparentemente simples, mas que motiva um complexo jogo de atracção e traição («Ninguém tinha a cintura mais fina, as pernas mais bonitas...»). De invocação de memórias («A charneca muito próxima, muito azul») e do reconhecimento da dureza da vida adulta («Deus afasta as nuvens, como se afastasse um véu, e a terra revelava-se como as cores e os cheiros, e uma luz inesperada...»). A vontade de obter desafogo financeiro leva cada uma das personagens a procurar eliminar os irmãos («Era muito dinheiro. Pelo menos para nós, que aos vinte e oito ou vinte e nove não tínhamos o suficiente para pagar as contas no fim do mês. E ainda havia a casa»). No decorrer do romance descobrem-se velhos segredos, guardados desde os tempos de infância («o tempo em que acreditávamos em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço...»).


Um dos melhores livros de literatura contemporânea portuguesa que alguma vez me passaram pelas mãos. Os quatro irmãos funcionam como espelhos que se reflectem uns nos outros e que se confundem. Os cenários são apresentados tal como são percepcionados pelas personagens. Wistaria Hall, a vivenda do avô, é de proporções quase infinitas, tal como os longos verões e a infinita imaginação dos quatro crianças. A cidade de Londres da vida adulta é, em oposição, boémia e decadente. Todas as personagens são imensamente complexas e imprevisíveis. A beleza reservada de Lizzie («Gostava de vê-la debruçada sobre as aguarela, a camisa xadrez suja de tinta, o cabelo preso na nuca com um gancho. Ninguém tinha os olhos tão azuis») contrasta com a beleza hollywoodesca de Miranda («Miranda, a que tinha os olhos tão azuis como Lizzie, a cintura tão fina, as pernas tão bonitas... e qualquer coisa de nocturno que não existia em Lizzie e que eu não conseguia definir. Tinha um ar pouco natural, com o casaco cinzento, ou talvez prateado, a maquilhagem pesada, os sapatos de salto muito alto.»). A confiança e aspecto atlético de John («John parecia mais alto e atlético do que nunca, o rosto queimado pelo sol. Era evidente que não passava muito tempo em Londres») contrasta como aspecto felino do narrador («Uma antiga namorada disse uma vez que eu tinha ar de quem passou algum tempo no inferno e está ainda um pouco chamuscado»).


Um pequeno livro viciante, a ler e reler. Como pode uma obra-prima destas custar apenas 7 euros! A não perder.


Recomendo que o leiam até ao próximo Pa-leio, já que muitos, como eu, não tiveram tempo de ler os Pássaros Feridos.






atonement
atone: to act in a way that compensates for a previous wrong, error, etc.

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